17.7.06


A PORQUINHA DE RABO ESTICADINHO

Rubem Alves

Ela estava feliz. Morava num lugar lindo. Havia árvores, gramados, riachos e cavalos, vacas patos, perus, galinhas. Comida não faltava. E tinha muitos amigos.
Agora ia ser mãe. Sua barriga estava enorme. Mal conseguia andar. E as visitas não paravam, todas lhe desejando boa sorte.
_ Nossa Senhora do Bom Parto que lhe de boa hora, diziam ao se despedir.
Era como se todos estivessem grávidos junto com ela...
Até que numa noite de lua cheia, ela percebeu que a hora havia chegado. Não, não iria para maternidade alguma. E nem precisaria de médico ou parteira. Sabia se virar sozinha. Fora assim com sua mãe, com sua avó, sua bisavó...Todas tinham tido muitos leitõezinhos sem problemas. Pois é, Gertrudes era uma porca... De manhã a notícia já se espalhara. O galo cantava do alto de um galho:
_ Os porquinhos nasceram...
E as galinhas d`angola acrescentavam:
_ São nove, são nove, são nove...
A bicharada toda veio. Já haviam visto aquela cena dezenas de vezes. Mas nunca se cansavam de vê-la de novo.
Leitõezinhos, bocas grudadas nas tetas: certamente se sentiam no céu. Nada sabiam do mundo. Nada sabiam da mãe. Nada sabiam de si. Mas sabiam que aquilo era bom.
Iguaizinhos. Bem, nem todos. O burro, discreto observador, notou que na fileira de rabinhos enrolados como mola havia um esticado como um prego.
Os porquinhos, é claro, não se davam conta disso. Eram só boca; só lhes interessava mamar. Além do que seus olhinhos ainda estavam fechados. Não podiam nem comparar e nem perceber as diferenças. Eram todos felizes.
Mas o tempo passou. Os olhinhos se abriram. E aconteceu que, certo dia, um deles se deu conta daquilo que o burro percebera.
_ Vejam só _ disse ele espantado_, Lili é diferente. Nós temos rabos enroladinhos. Ela tem rabo esticadinho.
Se os rabos enrolados são melhores que os esticados, isso é assunto que ninguém discutiu. A única coisa que importava era que havia oito iguais e um diferente. E, de repente, havia oito pares de olhos olhando o rabinho de Lili.
E isto doeu muito, porque todos queremos ser iguais: falamos coisas parecidas, rimos risos parecidos, comemos coisas parecidas, vestimos roupas parecidas. E gostamos de pertencer a grupos de pessoas que se parecem: clubes, torcidas de futebol, igrejas, escolas...
Quem não pertence ao bando dos iguais fica fora. E quem fica fora tem vergonha. Se esconde.
Lili ficou assim. Não queria mais brincar. Ficava sozinha, em casa, assentada sobre o rabinho, pensando no rabinho, com raiva do rabinho.
De noite rezava:
_ Papai do céu, me dá um rabinho enroladinho... Mas parece que papai do céu pertencia ao time dos oito, porque nada fazia para ajudar Lili.
Até que não agüentou mais, chorou para a mamãe:
_ Eu... eu queria ter um rabinho enroladinho, ser como os outros _ ela soluçou.
_ para que serve um rabo enroladinho? _ lhe perguntou a mãe.
_ Serve par ser olhado e pros outros dizerem que é igual _ ela respondeu.
D.Gertrudes resolveu tomar providências. Começou por modificar a dieta. Se o corpo é feito com as coisas que comemos, ela pensou, então se comermos coisas enroladas e que dêem voltas é certo que o rabo se enrolará. E Lili passou a comer broto de samambaia, molinha de chuchuzeiro, rodelas de cebola, e se os carocóis não tivessem fugido, teriam sido transformados em sopa. Mas não adiantou. A comida não modificou o rabinho: continuava esticado como sempre.
D.Gertrudes então resolveu apelar para a sabedoria das comadres, que lhe ensinaram uma simpatia: besuntar o rabo com suco de cipó misturado com banha de sucuri derretida, enrolado em pau torto e amarrado com barbante trançado.
_O que faz efeito _ elas disseram _ são as voltas do cipó, o enrolado da sucuri, as curvas do pau, as tranças do barbante. Apertada em tanto enrolo, não há coisa reta que resista...
E assim fizeram. Por oito dias, porque “8” é o número mais cheio de curvas. Na hora de se cortar o barbante, “6” da tarde, porque “6” se parece com rabo de porco enrolado, visto por trás, foi aquela “torcida” (“torcida” também era importante, por ajudar a torcer). Todo mundo na expectativa. E foi o triunfo: o rabinho ficou enroladinho. Só que ninguém sabia que era porque a banha da sucuri ainda estava dura. Bastou que Lili saísse pulando de alegria para que o rabo esquentasse com a circulação do sangue e a banha se derretesse e o enrolado se esticasse... Lili foi dormir aos soluços.
D.Gertrudes resolveu abandonar a supertição das simpatias e apelar para a ciência. Se existe um meio técnico para se enrolar cabelo que nasceu reto, porque não se poderá fazer a mesma coisa com um rabinho de porco?
No dia seguinte, mãe e filha foram as primeiras no salão do cabeleireiro.
_ Uma permanente no rabinho de Lili _ disse D.Gertrudes, decidida.
O cabeleireiro nem discutiu. Pôs Lili assentada em posição estranha, bumbum para cima, coberto com capacete elétrico. O resultado foi um espanto: rabo encrespado, enrolado, meio assado... mas qualquer sacrifício se faz para se ser como os outros...
Voltaram as duas, triunfantes, para casa. Lili sacudindo orgulhosamente seu rabinho novo, sem se agüentar de ansiedade para exibi-lo aos seus irmãos. De longe ela ouviu sua gritaria: brincavam numa poça d`água. Não teve dúvidas: saiu disparada e pulou dentro. Queria dizer-lhes:
_ vejam meu rabinho, igual ao de vocês... Mas não deu tempo. A água acabou com tudo, desfez a permanente, e o rabinho esticou de novo.
Foi então que D.Gertrudes ouviu falar de um novo jeito de fazer as coisas. D.Arara, multicolorida, de fala fácil, dizia que tudo é uma questão de cabeça. E filosofou que tudo que é torto se conserta com pensamentos retos, e tudo que é reto se enrola com pensamentos tortos.
_ O que importa _ ela dizia _ são os pensamentos positivos. Os pensamentos positivos têm força. Portanto _ concluiu _ se Lili tiver força de vontade (isto é muito importante!) e diariamente só pensar no seu rabo enrolado, ele acabará por obedecer aquilo que a cabeça manda.
Começou então para Lili um regime novo. Não de comidas, mas de idéias, assentada diante de D.Arara, que lhe fazia longos e encrespados trinados:
_ Prrrrrrrrrrrtaco-tataco, prrrrrrrrrrrrrrrrrtaco-tataco... Mas Lili se cansou, desacreditou, abandonou... o tempo passou sem novidades.
Até que uma coisa nunca vista aconteceu. Chegou na fazenda um circo, com palhaços, equilibristas, mágicos e trapezistas, algodão doce colorido e pipoca de mel e sal. Foi aquela alegria e naqueles dias se esqueceram todas as tristezas e a bicharada só falava do mundo maravilhoso do circo. Até mesmo Lili se esqueceu do seu rabinho esticado.
_ mas _ que pena! _ as coisas boas não duram para sempre. Foi chegando o momento em que o circo iria embora, e mesmo antes da hora, já todos sentiam saudades. Chegou a hora de dizer adeus.Mas, _ oh! Surpresa _ em meio ao último espetáculo, o dono, de fala enrolada, anunciou uma coisa que ninguém esperava:
_ Respeitável público! Nosso circo está á procura de dois jovens que desejem se tornar artistas, e estejam prontos a correr o mundo par fazer as pessoas felizes. Amanhã, bem de manhã, entrevistarei os candidatos desta fazenda, se houver...
Foi um rebuliço. Os irmãozinhos de Lili foram, os primeiros da fila.Sorriam, agitando seus rabinhos enrolados. Na verdade riam com a cara porque riam com o rabo. Para eles não havia no mundo nada que fosse mais belo que um rabinho enrolado. (E, diga-se de passagem, eles não são os únicos a pensar assim. Há muitas pessoas que passam a vida toda namorando seus próprios rabos. E por isso não enxergam muito longe...) O dono do circo examinava a todos atentamente. Até que parou diante de um deles e disse:
_ É este p primeiro escolhido. Perfeito para um palhacinho. Este rabinho enrolado fará todos darem risadas. Aí parou pensativo.
_ Mas não vejo ninguém que sirva para trapezista, uma menina... Os trapezistas vivem sobre o perigo, sabem que a vida não é palhaçada engraçada, nem tudo é riso. Nunca olham para o próprio rabo, atrás, mas sempre para frente. Quem olha para trás cai sobre o abismo e morre... Eles têm um rosto diferente, um sorriso que não é risada, misturada com um pouquinho de tristeza. E é por isso que os outros os amam de um jeito diferente: eles riem do palhaço, mas voam com o trapezista. Um trapezista a gente conhece pelo jeito de olhar...
Lili estava longe. Não entrara na fila. Sabia que não seria escolhida. Ouvia. E pensou: “De fato, eu não seria uma boa palhacinha. Mas como eu gostaria de ser trapezista”.
O dono do circo olhava ao redor, procurando. E seus olhos se encontraram com os de Lili.
_ Menina, venha cá. Que é que você tem nos olhos? Parecem olhos de trapezista. Você não gostaria?
_ Mas... o meu rabinho _ ela disse quase pedindo desculpas.
_ Quem se interessa por isso? Quem tem rabo enroladinho passa o tempo todo olhando ou para trás ou para o espelho. Mas quem não tem olha para frente, para cima, para o vazio. E é isso que torna belas as pessoas: não o que elas têm sobre a pele, mas o que têm dentro dos olhos... Lili sorriu e disse que sim.
-Transformou-se na trapezista de olhos tristes, que todos amavam. E nunca mais se preocupou com o seu rabinho.

Um comentário:

Lucilaine de Fátima disse...

Essa história do Rubem Alves nos leva a pensar o porquê de mudar a nós mesmos e querer ser igual para agradar os outros.
Ainda bem que tem um final feliz e a própria diferença é que a torna realizada.
Que nos sirva de lição!
E viva nosso amado Rubem Alves!
Boa escolha Erlen.
Beijos,
Lu