31.8.06

Por Toda Vida Agora


Vanessa Rangel

Um dia desses você vem
Vai chegar assim sem me notar
Sem presa
Sem querer ficar
Mas tudo pode acontecer
Uma febre, um fogo de acender
Sei lá
Se eu pudesse
Ter uma chance
Ter um romance
Por toda vida agora
Vem me dizer
Qual o seu rosto
Qual o seu gosto
Não vou ficar de fora
Cadê você
E o nosso amor existirá
Na vida, no que vier
Numa explosão atômica
Num raio, num grão qualquer
Tá tudo certo, tudo bem
Vem comigo, vem, me dê a mão
Me tira
Dessa solidão
O mundo gira tão veloz
Eu pergunto o que seremos nós
Um dia ...

29.8.06

Mal de Mim



Djavan

Eu pensei, que fosse coisa para um dia só

Ficar de mal de mim
Reagi, sou seu amigo e digo como vai
você fica séria
E nem sinal, brigou comigo e a solidão
Servirá de lugar pra nós dois
Se é por amor, que tal agir e não radicalizar
Sejamos mais lisos
Pega esse meu ombro
Rega, se adormecer eu sei que o sono passou a perna
Nessa distância férrea, que marcou
Meu amor dormir contigo é escutar Gal e Tom
O que rolar é bom
Passear, rever amigos todos e boas novas
Visitar a Grécia ...

Tudo é mais grave de madrugada?


Outro dia, não sei bem se foi na novela das 20h que na verdade começa às 21h, ouvi alguém dizer que: - Tudo é mais grave de madrugada! E referiam-se a uma febre ou indisposição da filha pequena ou algo assim.
Nos últimos dias tenho tido uma insônia triste e a minha experiência com as noites em claro já é antiga... bem antiga mesmo. Noite dessas, lembrei-me dessa frase: Tudo é mais grave de madrugada!
Nossos pensamentos voltam-se para o difícil, para a impossibilidade, o medo, o inalcansável e parecemos impotentes diante de nós mesmos. A busca pelo controle remoto da TV é imediato e o retorno pelo que não existe deagradável e alegre nos canais abertos, nos faz mais impacientes. São filmes antigos, testemunhos religiosos imagináveis, vendas, entrevistas com desconhecidos completos... enquanto pra mim, seria maravilhoso mesmo assistir a um belo desenho animado do tipo Shrek; A era do gelo ou Madagascar...
Uau! Que delícia seria! ou quem sabe um daqueles seriados, como Jeannie é um gênio ou a Feiticeira, que me fazem lembrar os meus velhos tempos de menina, tempos em que, eu também sofria de insônia mas, armava uma cabana com meus travesseiros e lençóis e acabava dormindo cansada... depois de esconder-me de mim mesma com minhas bonecas que falavam e somente eu ouvia.
Hoje, não tenho mais as bonecas, tenho os controles do vídeo, da TV, do DVD, do som, o celular e os torpedos para os amigos de insônia, os livros, 1, 2, 3, que ficam na cabeceira para serem escolhidos... tenho as lembranças, a lista da agenda para o dia seguinte, as metas que pretendo cumprir, os medos, as angustias. Não faço mais as cabanas e sinto-me envolta por uma imensa tenda de misteriosas perguntas que, possivelmente, eu encontre todas as respostas ao amanhecer.
Hoje, sinto-me ao menos mais forte com a presença de Deus, tenho a certeza de que não estou só e que Ele me embala, mesmo que o momento pareça intolerante.

25.8.06

As palavras são novas



As palavras são novas: nascem quando
No ar as projetamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias
Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.

José Saramago

24.8.06

Digitais




Isabela Taviani

Eu tava aqui tentando não pensar no seu sorriso
Mas me peguei sonhando com sua voz ao pé do ouvido
E te liguei
Me encontro tão ferida, mas te vejo ai também em carne viva
Será que não tem jeito?
Esse amor ainda nem nasceu direito pra morrer assim
Se você pudesse ter me ouvido um pouco mais
Se você tivesse tido calma pra esperar
Se você quisesse poderia reverter
Se você crescesse e então se desculpasse
Mas se você soubesse o quanto eu ainda te amo
É que eu não posso mais
Não vou voltar atrás
Raspe dos seus dedos minhas digitais
Não vou voltar atrás
Apague da cabeça o meu nome, telefone e endereço
Não vou, eu não vou voltar atrás
Arranque do teu peito o meu amor cheio de defeitos
Me mata essa vontade de querer tomar você num gole só
Me dói essa lembrança das suas mãos em minhas costas sob o sol da manhã
Você já me dizia: conheço bem as suas expressões
Você já me sorria ao final de todas as minhas canções
Então por que?

23.8.06

O meu desassossego



Fácil é pedir aquilo que não entregamos a ninguém
Fazer o que acreditamos ser o mais agradável
Seguir pelo caminho mais curto é sempre bom

Difícil é devolver o que guardamos como verdade
e que aos poucos transformamos em lei
Desfazer o sepulcro da semente cultivada
quando o jardim já floresceu

Voltar pelo atalho mais longo é sempre dor...

Indubitavelmente, nos olhamos num espelho
que não nos permite ver o avesso
estamos parados no meio do caminho
e não sabemos o seu (re)começo

Olhamos na direção contrária da linha do sol
nos desapropriamos de nossa história
o princípio agora é um desfecho
de braços sem abraços, de boca sem um beijo

Voltar já não nos cabe...
seria apenas um desassossego
Fácil é mesmo pensar em voltar atrás
e não (re)começar jamais!

22.8.06

Partir Andar


Partir andar, eis que chega
Essa velha hora tão sonhada
Nas noites de velas acesas
No clarear da madrugada
Só uma estrela anunciando o fim
Sobre o mar sobre a calçada
E nada mais te prende aqui
Dinheiros, grades ou palavras
Partir Andar, Eis que chega
Não há como deter a alvorada
Pra dizer, um bilhete sobre a mesa
Para se mandar, o pé na estrada
Tantas mentiras e no fim
Faltava sempre uma palavra
Faltava quase sempre um sim
Agora já não falta nada
Eu não quis, te fazer infeliz
Não quis....
Por tanto não querer, talvez quis...
Partir andar, eis que chega
Essa velha hora tão sonhada
Nas noites de velas acesas
No clarear da madrugada
Só uma estrela anunciando o fim
Sobre o mar sobre a calçada
E nada mais te prende aqui
Agora já não falta nada...
Não falta nada...

Zélia Duncan e Herbert Viana

20.8.06

Orquídeas



Apagaram-se as luzes da ribalta
e a lua alta, espia, mansa
tua mão que a cintura enlaça
e os pés que circundam
como quem inicia a dança

Lançaram-se no ar as flechas
que ferozmente atravessam o coração
e em meio ao tafetá e as borboletas
surgem sinais da paixão

Da arpa do pequeno anjo
soa a suave canção
e diz que vens de longe
para acomodar-se como refrão

As luzes que a escadaria enfrenta
no sopro, oh grandioso vento!
dançam as mais lindas orquídeas
carregam o surto de um momento
do amor que levam da vida...

Suave paixão... Doce vida!

Dulcinéia


Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.

José Saramago

19.8.06

O pião


Franks Kafka
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E se via um menino que tinha um pião já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade, acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas – era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto corria até perder o fôlego atrás dele. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças – que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos – afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira.

18.8.06


A vida é minha pra ser ousada
Não é preciso consenso nem arte,
nem beleza ou idade:
a vida é sempre dentro e agora.
(A vida é minha para ser ousada.)

A vida pode florescer
numa existência inteira.
Mas tem de ser buscada,
tem de ser conquistada.

Lya Luft

17.8.06

Proseando...

E para responder um questionamento da minha amiga Lu, usarei as boas falas de Rubem Alves...

Prosear é um jeito de falar. Fala sem objetivo definido, como o vôo dos urubus - indo ao sabor do vento. Palavras fluindo. Um jeito taoísta de ser. Para prosa não existe 'ordem do dia', não há conclusões, não há decisões. A prosa não quer chegar a nenhum lugar. A prosa encontra sua felicidade em prosear. Como andar de barco a vela em que o bom não é chegar mas o 'estar indo'. 'A coisa não está nem na partida nem na chegada, mas na travessia', Guimarães Rosa. Prosear é brincar com as palavras. Escrevi uma crônica com o título Tênis x Frescobol, sobre dois tipos de fala. Fala do tipo Tênis tem um objetivo preciso: reduzir o outro ao silêncio por meio de uma cortada. Ter razão. Ganhar o argumento. Convencer. Sempre termina mal. Um ganha, fica feliz e se sentindo superior. O outro perde, fica com raiva e se sentindo inferior. Frescobol é diferente. A felicidade do jogo está em estar acontecendo, em não parar, vai, vem, vai, vem, vai, vem, como numa transa indiana, sem orgasmo, feita de um prazer permanente que não acaba. O orgasmo na transa, como a cortada no tênis, são o fim do brinquedo. Saber prosear, jogar conversa fora, é o segredo das relações amorosas. Nietzsche dizia que quando se vai casar a única pergunta importante a se fazer é 'terei prazer em conversar com essa pessoa quando eu for velho?' Nessa sala estaremos proseando. Falar sobre o que der na telha. Pensamentos avulsos. Dicas. Informações sobre as coisas novas na minha casa. Apareça sempre para prosear!



Cozinha


Rubem Alves

Qual é o lugar mais importante da sua casa? Eu acho que essa é uma boa pergunta para início de uma sessão de psicanálise. Porque quando a gente revela qual é o lugar mais importante da casa, a gente revela também o lugar preferido da alma. Nas Minas Gerais onde nasci o lugar mais importante era a cozinha. Não era o mais chique e nem o mais arrumado. Lugar chique e arrumado era a sala de visitas, com bibelôs, retratos ovais nas paredes, espelhos e tapetes no chão. Na sala de visitas as crianças se comportavam bem, era só sorrisos e todos usavam máscaras. Na cozinha era diferente: a gente era a gente mesmo, fogo, fome e alegria.

"Seria tão bom, como já foi...", diz a Adélia. A alma mineira vive de saudade. Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas...

Fogo de fogão de lenha é diferente de todos os demais fogos. Veja o fogo de uma vela acesa sobre uma mesa. É fogo fácil. Basta encostar um fósforo aceso no pavio da vela para que ela se acenda. Não é preciso nem arte nem ciência. Até uma criança sabe. Só precisa um cuidado: deixar fechadas as janelas para que um vento súbito não apague a chama. O fogo do fogão é outra coisa. Bachelard notou a diferença: "A vela queima só. Não precisa de auxílio.

A chama solitária tem uma personalidade onírica diferente da do fogo na lareira. O homem, diante de um fogo prolixo pode ajudar a lenha a queimar, coloca uma acha suplementar no tempo devido. O homem que sabe se aquecer mantém uma atitude de Prometeu. Daí seu orgulho de atiçador perfeito..." Fogo de lareira é igual ao fogo do fogão de lenha. Antigamente não havia lareiras em nossas casas. O que havia era o fogo do fogão de lenha que era, a um tempo, fogo de lareira e fogo de cozinhar.

As pessoas da cidade, que só conhecem a chama dos fogões a gás, ignoram a arte que está por detrás de um fogão de lenha aceso. Se os paus grossos, os paus finos e os gravetos não forem colocados de forma certa, o fogo não pega. Isso exige ciência. E depois de aceso o fogo é preciso estar atento. É preciso colocar a acha suplementar, do tamanho certo, no lugar certo. Quem acende o fogo do fogão de lenha tem de ser também um atiçador.

O fogão de lenha nos faz voltar "às residências de outrora, as residências abandonadas mas que são, em nossos devaneios, fielmente habitadas" (Bachelard). Exupèry, no tempo em que os pilotos só podiam se orientar pelos fogos dos céus e os fogos da terra, conta de sua emoção solitária no céu escuro, ao vislumbrar, no meio da escuridão da terra, pequenas luzes: em algum lugar o fogo estava aceso e pessoas se aqueciam ao seu redor.

Já se disse que o homem surgiu quando a primeira canção foi cantada. Mas eu imagino que a primeira canção foi cantada ao redor do fogo, todos juntos se aquecendo do frio e se protegendo contra as feras. Antes da canção, o fogo. Um fogo aceso é um sacramento de comunhão solitária. Solitária porque a chama que crepita no fogão desperta sonhos que são só nossos. Mas os sonhos solitários se tornam comunhão quando se aquece e come.

Nas casas de Minas a cozinha ficava no fim da casa. Ficava no fim não por ser menos importante mas para ser protegida da presença de intrusos. Cozinha era intimidade. E também para ficar mais próxima do outro lugar de sonhos, a horta-jardim. Pois os jardins ficavam atrás. Lá estavam os manacás, o jasmim do imperador, as jabuticabeiras, laranjeiras e hortaliças. Era fácil sair da cozinha para colher xuxús, quiabo, abobrinhas, salsa, cebolinha, tomatinhos vermelhos, hortelã e, nas noites frias, folhas de laranjeira para fazer chá.

Ah! Como a arquitetura seria diferente se os arquitetos conhecessem também os mistérios da alma! Se Niemeyer tivesse feito terapia, Brasília seria outra. Brasília é arquitetura de arquitetos sem alma. Se eu fosse arquiteto minhas casas seriam planejadas em torno da cozinha. Das coisas boas que encontrei nos Estados Unidos nos tempos em que lá vivi estava o jeito de fazer as casas: a sala de estar, a sala de jantar, os livros, a escrivaninha, o aparelho de som, o jardim, todos integrados num enorme espaço integrado na cozinha. Todos podiam participar do ritual de cozinhar, enquanto ouviam música e conversavam. O ato de cozinhar, assim, era parte da convivência de família e amigos, e não apenas o ato de comer. Eu acho que nosso costume de fazer cozinhas isoladas do resto da casa é uma reminiscência dos tempos em que elas eram lugar de cozinheiras negras escravas, enquanto as sinhás e sinhazinhas se dedicavam, em lugares mais limpos, a atividades próprias de dondocas como o ponto de cruz, o frivolité, o crivo, a pintura e a música. Se alguém me dissesse, arquiteto, que o seu desejo era uma cozinha funcional e prática, eu imediatamente compreenderia que nossos sonhos não combinavam, delicadamente me despediria e lhes passaria o cartão de visitas de um arquiteto sem memórias de cozinhas de Minas.

As cozinhas de fogão de lenha não resistiram ao fascínio do progresso. As donas de casa, em Minas, por medo de serem consideradas pobres, dotaram suas casas de modernas cozinhas funcionais, onde o limpíssimo e apagado fogão à gás tomou o lugar do velho fogão de lenha. As cozinhas, agora, são extensões da sala de visitas. Mas isto é só para enganar. A alma delas continua a morar nas cozinhas velhas, agora transferidas para o quintal, onde a vida é como sempre foi. Lá é tão bom, porque é como já foi.

Eu gostaria de ser muitas coisas que não tive tempo e competência para ser. A vida é curta e as artes são muitas. Gostaria de ser pianista, jardineiro, artista de ferro e vidro - talvez monge. E gostaria de ter sido um cozinheiro. Babette. Tita. Meu pai adorava cozinhar. Eu me lembro dele preparando os peixes, cuidadosamente puxando a linha que percorre o corpo dos papa-terras, curimbas, para que não ficassem com gosto de terra. E me lembro do seu rosto iluminado ao trazer para a mesa o peixe assado no forno.

Faz tempo, num espaço meu, eu gostava de reunir casais amigos uma vez por mês para cozinhar. Não os convidava para jantar. Convidava para cozinhar. A festa começava cedo, lá pelas seis da tarde. E todos se punham a trabalhar, descascando cebola, cortando tomates, preparando as carnes. Dizia Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida e nem na chegada, mas na travessia." Comer é a chegada. Passa rápido. Mas a travessia é longa. Era na travessia que estava o nosso maior prazer. A gente ia cozinhando, bebericando, beliscando petiscos, rindo, conversando. Ao final, lá pelas onze, a gente comia. Naqueles tempos o que já tinha sido voltava a ser. A gente era feliz.

Sinto-me feliz cozinhando. Não sou cozinheiro. Preparo pratos simples. Gosto de inventar. O que mais gosto de fazer são as sopas. Vaca atolada, sopa de fubá, sopa de abóbora com maracujá, sopa de beringela, sopa da mandioquinha com manga, sopa de coentro... Você já ouviu falar em sopa de coentro? É sopa de portugueses pobres, deliciosa, com muito azeite e pão torrado. A sopa desce quente e, chegando no estômago, confirma...A culinária leva a gente bem próximo das feiticeiras. Como a Babette (A festa de Babette) e a Tita (Como água para chocolate)... (Correio Popular, Caderno C, 19/03/2000.)

Tanto Amar



Chico Buarque

Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela é bonita
Tem um olho sempre a boiar
E outro que agita
Tem um olho que não está
Meus olhares evita
E outro olho a me arregalar
Sua pepita
A metade do seu olhar
Está chamando pra luta, aflita
E metade quer madrugar
Na bodeguita
Se seus olhos eu for cantar
Um seu olho me atura
E outro olho vai desmanchar
Toda a pintura
Ela pode rodopiar
E mudar de figura
A paloma do seu mirar
Virar miúraÉ na soma do seu olhar
Que eu vou me conhecer inteiro
Se nasci pra enfrentar o mar
Ou faroleiro
Amo tanto e de tanto amar
Acho que ela acredita
Tem um olha a pestanejar
E outro me fita
Suas pernas vão me enroscar
Num balé esquisito
Seus dois olhos vão se encontrar
No infinitoAmo tanto e de tanto amar
Em Manágua temos um chico
Já pensamos em nos casar
Em Porto Rico

A foto magnífica é de Kazuo Okubo, um fera daqui...

16.8.06

Nunca é longe demais...





Nunca é também uma cidade chamada Adeus!
Lá, os pássaros não cantam em bom som
nem crianças brincam em parques coloridos
a terra sob os pés é cinza e pouco firme
e as nuvens se desencontram para não mais voltar

Na cidade do Adeus não existem cantatas de Natal
suas ruas são estreitas vielas e as casas, pobres casas
nada possuem, além de simples varais...
nos quais roupas são colocadas em tamanhos desiguais

Nunca é uma cidade chamada Sempre!
Onde não existem apertos de mãos, ao menos largos abraços
desconhece-se a claridade do sorriso e a magia do pensar
em que perpetua o não como resposta e o amargo do ócio

Nunca é mais que Adeus e sempre, também é desesperança!
é um choro descompassado de criança
e o entardecer sem previsões de luar
um atravessar distante entre o reflexo e o (re)pensar

Adeus é longe demais!
Nunca é perder sem arriscar!
Sempre é ter medo de errar!
Na terra do nunca, ninguém canta, dança ou bate palma...
Simplesmente se entristece, emudece, ensurdece e se esquece
de que vale a pena, ter coragem de tentar...


Nunca é onde não se deve chegar por amar
carregando na mala a idéia das portas fechar...
Nunca é um lugar em que não se pode pensar!

Para Lu,
com amizade,
carinho e respeito...
só pra dizer que ADEUS é longe demais!



Eu aprendi...
...que o AMOR, e não o TEMPO, é que cura todas as feridas;
Eu aprendi...
...que ninguém é perfeito até que vcse apaixone por essa pessoa;
Eu aprendi...
...que a vida é dura, mas eu sou mais ainda;
Eu aprendi...
...que as oportunidades nunca são perdidas;
alguém vai aproveitar as que você perdeu.
Eu aprendi...
...que devemos sempre ter palavras doces e gentis, pois amanhã talvez tenhamos que engoli-las;
Eu aprendi...
...que um sorriso é a maneira mais barata de melhorar sua aparência;
Eu aprendi...
...que não posso escolher como me sinto, mas posso escolher o que fazer a respeito;
Eu aprendi...
...que todos querem viver no topo da montanha, mas toda felicidade e crescimento ocorre quando vc está escalando-a;
Eu aprendi...
...que quanto menos tempo tenho, mais coisas consigo fazer!
Eu aprendi...
Que Deus sem mim é DEUS, e eu sem DEUS, sou NADA !!!

Mundo pequenino

Para ser feliz
É preciso ter
Este mundo azul
Da imensidão
É fazer das tristezas,
Estrelas a mais
E do canto uma canção

Há um mundo bem melhor
Todo feito pra você
É um mundo pequenino
Que a ternura fez ...

Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar.


O mestre dos mestres, deixou muitas lições e uma delas, talvez a mais importante pra mim, seja aprender de tudo um pouco, nunca acreditando que já sabemos de tudo ou que estamos fazendo tudo certo... A vida é uma escola de muitas histórias e muitas páginas também... Há que se experimentar de tudo!
O texto a seguir é de Paulo Freire

Ensinar é exigir tanto de si quanto de quem aprende, por isso não pode ser feito de qualquer modo, requer responsabilidade social. E é por isso que é preciso manter uma programação com constante avaliação. Além disso, há os pacotes fechados, prontos, que, quando em contato com a realidade contextual de cada lugar, desaparecem ou formam deformando. Justamente aí se apresenta o autoritarismo como suporte às “Tias” para terminar o dia, a tarefa. A tarefa da professora é também alertar para a ordem social de poder, sem deixar de adocicar-amaciar , assim “é possível ser tia sem amar os sobrinhos, sem gostar sequer de ser tia, mas não é possível ser professora sem amar os alunos – mesmo que amar, só, não baste – e sem gostar do que se faz”.

PRIMEIRA CARTA (ensinar – aprender – leitura do mundo – leitura da palavra): Quem ensina deve aprender com humildade e, assim, passar o conteúdo da vida para o educando/aprendente. Da mesma forma é o ensinar a ler, que é engajar-se numa experiência criativa em torno da compreensão, que demanda leitura, estudo, trabalho paciente, desafiador, persistente.

SEGUNDA CARTA (não deixe que o medo do difícil paralise você): Medo é dificuldade ante a algo que imaginamos desconhecido, sendo assim, temos que observar: se a capacidade de resposta está altura do desafio; ou se a capacidade está aquém; e também se está além. A aprendizagem passa pela leitura com fixação e atenção para tirar o medo, pois é preciso experimentar-se cada vez mais criticamente na tarefa de ler e de escrever para produzir conhecimento.

TERCEIRA CARTA (“Vim fazer o curso do magistério porque não tive outra possibilidade”): Só ia ser professor quem não dava para mais nada (p. 52), com essa frase Freire resume a tese desta carta, pois quem não tem opção de vida para trabalhar, faz com desgosto, e, como diz Rubem Alves, tem que haver prazer no labor para que a produção alcance ser estado ideal para todos.

QUARTA CARTA (Das qualidades indispensáveis ao melhor desempenho de professores e professoras progressistas): As qualidades principais que se busca nos professores são humildade, coragem, confiança em nós mesmos, respeito a nós mesmos e aos outros, e também a tolerância, que requer respeito, disciplina, ética. O conflito também é saudável , diz o autor.

QUINTA CARTA (primeiro dia de aula): É preciso ser espontâneo, sem ter medo da criatividade e interação dos alunos. O educador não pode temer os sentimentos, as emoções, os desejos, e lidar com eles como mesmo respeito com que nos damos a uma prática cognitiva integrada com os educandos. É preciso voar de forma disciplinada. É preciso estimular a imaginação dos educandos.

SEXTA CARTA (das relações entre a educadora e os educandos): Considero o testemunho como um discurso coerente e permanente da educadora progressista. Tem-se que lutar para acrescentar sempre positivamente à relação entre as partes aprendentes, de forma democrática e amorosa, restaurando e implantando a alegria de viver e o direito de sonhar.

SÉTIMA CARTA (de falar ao educando a falar a ele com ele; de ouvir o educando a ser ouvido por ele):
O respeito e a posição política fará com que a conversa com o educando se estabeleça em níveis agradáveis e criativos para ambos. Estimulando as relações futuras daquele com o mundo.

OITAVA CARTA (identidade cultural e educação): Falar de contexto parece repetitivo, contudo é ponto crucial para que a educação se desenvolva com qualidade e responsabilidade.

NONA CARTA (contexto concreto – contexto teórico): É do contexto concreto que tiramos nossas teorias para o contexto teórico, assim, temos a possibilidade de aprimorar os conhecimentos das relações que fazemos entre o mundo real e o imaginado na teoria, fazendo assim com que a criatividade seja saudável e produtora, além de ser coerente. Ou ainda, é preciso saber ler o mundo. E ensinar a ler o mundo é um desafio enorme, pois estamos acostumados a ser exploradores irresponsáveis. A educação visa responsabilidade baseada nas relações de contextos.

DÉCIMA CARTA (mais uma vez, a questão da disciplina): Saber dizer não sempre foi questão difícil, e não é no imobilismo que vamos ensinar a liberdade, mas é com a responsabilidade pensada, crítica, que vamos construir em conjunto a educação libertadora de vida.

ULTIMAS PALAVRAS (saber e crescer – tudo a ver): Saber é crescer construindo um mundo melhor para nós e para os outros. É respeitar a natureza com inteligência e coerência. Também é utilizar a educação alcançada para libertar os oprimidos das garras dos poderosos opressores.

15.8.06

Resposta para um amor do passado...


Assim que voltei da igreja hoje pela manhã e cheguei em casa, comecei a refletir um pouco sobre a conversa que tivemos mais cedo. Creio que vc tem mesmo razão, eu mudei, mas considero que a minha mudança me fez muito bem. Principalmente, hoje, sinto-me uma pessoa mais madura, responsável por meus atos e admito, penso antes de fazer qualquer coisa que possa me tirar da minha atual 'rotina' (acho que essa é a palavra que eu tanto repelia 'rotina'), mas agora, aqui sentada, depois de fazer um total retrospecto da minha história de vida, sei bem o que já sofri, já vivi, me alegrei também, claro, porém, sempre busquei curtir a minha vida com a emoção das outras pessoas, acreditando se tratar da minha.

Sei que esse papo parece um saco! Mas, essa coisa de Transtorno Afetivo Bipolar, existe mesmo! E não é fácil, um dia, vc chegar na frente de um psiquiatra e começar a dizer tudo o que faz, sente e pensa... Receber algumas receitas, um atestado médico para descansar em casa, por estar num estado chamado hipomaníaco (que nada mais é que depressão com alta energia), era o que eu tinha e sempre acreditei ser apenas um traço meu de personalidade. Mas, eu lutei, foram meses de crise, terapias, insônias, desentendimentos, aceitações... Nessas horas, sabe? As pessoas desaparecem, elas não querem te ouvir, pensam que vc é um 'bicho de outro mundo', ninguém para e diz: Deixa eu te ouvir! Todo mundo diz, sim: Olha, agora eu não estou podendo falar... E daí a gente corre para o canto da gente e fica quieto. Faz um ano que conheci essa angustia e 4 meses apenas que me tornei estável.

Deus! Esse sim é o nosso fiel amigo e a cura mesmo, hoje sei, que só ele pode me dar. Tenho vivido dias de alegria, não estou com ninguém, mas sinto-me no direito de ter alguém pra 'chamar de meu', pq não? Eu mereço, quero, posso e vou sim, esperar o dia em que terei uma pessoa que me faça companhia hoje e amanhã eu possa pelo menos ligar para dizer um oi. Eu não quero mais sofrer e se tenho certeza de uma coisa, é que não quero mais sofrer. E com isso, não estou dizendo que vc ou alguém me inspira sofrimento. Poxa vida, se vc fosse uma pessoa livre, eu me entregaria a viver essa história, mas vc não é e eu não quero, mais uma vez, estar fazendo parte da sua história, que não seja como uma grande amiga que sente sim muito 'tesão', que curtiu muita aventura, fez loucuras e que não esquece isso tudo, mas que hoje prefere deixar tudo isso lá guardadinho no passado. Não é por medo e sim por segurança de não me ferir, mas acima de tudo, de não te ferir também, pq a gente fala do não envolvimento emocional... mas, é balela! Envolvimento tem sim, ninguém vai pra cama com alguém sem envolvimento. E o que eu já te disse e repito, as pessoas não se esbarram nesse mundo material por acaso, seguindo a lei de que o espírito precede a matéria, tudo isso já estava previsto... Não nos encontramos aqui simplesmente pq nossas peles se identificaram, não, tem muito mais no mundo espiritual que vc desconhece. E eu, pelos estudos que tenho feito, tenho a orientação de fazer o bem ao próximo e não o contrário. Do pouco que vc me conhece do passado mesmo, saberá que sou assim, apenas estou fortalecendo meus alicerces.

Eu mudei... sinto muito se não sou mais a mesma. Mas, devo dizer que estou muito mais feliz que antes. Que a voz que sai pela minha boca é mais tranquila, que sou uma pessoa mais consciente das verdades e ensinamentos de Deus. Não deixei de gostar das coisas de antes, imagina!!! Isso, faz parte da minha personalidade, apenas tenho agora, entendimentos morais sobre TER e SER, e se espero que Deus me torne uma mulher visível aos olhos de algum homem, preciso ser no minimo respeitável.

Não é uma dispensa, nem um fora, deixar de lado ou coisa do tipo... Mas, uma escolha que preciso fazer, para me dar a chance de perseverar, caso contrário estarei sempre habituada a um dia sim, outro não e quando quiser vai rolar, até o dia que acabarei sozinha. Acho que vc fez a sua e te garanto que foi a MELHOR ESCOLHA que poderia ter feito, pois a sua família é grandiosa, o resto é só figuração.

Enquanto amigos, vc é alguém com quem nunca perderei os laços de ternura e de afeto. Não fique triste comigo, a gente só se encontrou um tempo depois, foi só isso... Mas, já vivemos a nossa história inesquecível, pelo menos pra mim ela será eternamente lembrada, tenha certeza... rsrsrsrsrs

A sua amizade me faz muito feliz.

Um beijo grande no seu coração!

Erlen

14.8.06

O dia dos pais...



Já no sábado à noite, fomos ao culto mensal de agradecimento... E eu estava muito feliz por estar acompanhada de meus pais. Em uma das homenagens feitas aos pais, o coral cantou a música 'carinhoso' e alguns não conseguiram conter as lágrimas, eu inclusive, respirava fundo e olhava para o alto... Era a minha maneira de agradecer a Deus a presença e vida de meus pais ali e em todos os dias de minha vida.
Chegamos em casa às 21h, o pai ficou na sala vendo TV e eu, junto com a mãe ficamos na cozinha adiantando os 'comes' para o domingo. Depois que o meu irmão Anderson mora numa casa com piscina, nada é melhor que comemorar as datas especiais por lá!
No domingo delicioso de sol nesse céu que é o mar de Brasília, acordamos cedo e depois dos abraços, beijos e presente. Enfim, conseguimos encher o carro com todas as delícias que minha mãe sempre faz para então, irmos para a casa de meu irmão.
E, num determinado momento, eu estava dentro da piscina cercada de meus sobrinhos e da Mel (uma cadela labrador), parei e avistei meu pai sentado na cadeira de balanço, sempre assobiando e fazendo perguntas sobre as coisas ditas... rsrsrs, ou fazendo piadas com o que ouve. Foi um instante de reflexão em minha mente, pensei se haveria maior alegria que ter seus pais, irmãos, sobrinhos, cachorros... todos esses e mais um lindo dia de sol para curtir a vida?
Saúde, harmonia, paz, prosperidade e alegrias são sentimentos que aprendemos a cultivar com o passar dos anos e com a fé em Deus.
Hoje, tenho certeza de que a família é sempre o melhor lugar para estarmos 'infiltrados' e felizes.

Precisa-se de Matéria Prima para construir um País

João Ubaldo Ribeiro
A crença geral anterior era que Collor não servia, bem como Itamar e Fernando Henrique. Agora dizemos que Lula não serve. E o que vier depois de Lula também não servirá para nada. Por isso estou começando a suspeitar [...] que o problema está em nós. Nós como POVO, como matéria prima de um país. Porque pertenço a um país onde a “ESPERTEZA" é a moeda que sempre é valorizada, tanto ou mais do que o dólar. [...] Pertenço a um país onde, lamentavelmente, os jornais jamais poderão ser vendidos como em outros países, isto é, pondo umas caixas nas calçadas onde se paga por um só jornal E SE TIRA UM SÓ JORNAL, DEIXANDO OS DEMAIS ONDE ESTÃO. Pertenço ao país [...] onde a gente frauda a declaração de imposto de renda para não pagar ou pagar menos impostos. [...] onde não existe a cultura pela leitura (exemplo maior nosso atual Presidente, que recentemente falou que é "muito chato ter que ler") e não há consciência nem memória política, histórica nem econômica. [...]Pertenço a um país onde as carteiras de motorista e os certificados médicos podem ser "comprados", sem fazer nenhum exame. Um país onde fazemos um monte de coisa errada, mas nos esbaldamos em criticar nossos governantes. Quanto mais analiso os defeitos do Fernando Henrique e do Lula, melhor me sinto como pessoa, apesar de que ainda ontem "molhei" a mão de um guarda de trânsito para não ser multado. Quanto mais digo o quanto o Dirceu é culpado, melhor sou eu como brasileiro, apesar de ainda hoje de manhã passei para trás um cliente através de uma fraude, o que me ajudou a pagar algumas dívidas. Não. Não. Não. Já basta. Como "Matéria Prima" de um país, temos muitas coisas boas, mas nos falta muito para sermos os homens e mulheres que nosso país precisa. Esses defeitos, essa "ESPERTEZA BRASILEIRA" congênita, essa desonestidade em pequena escala, que depois cresce e evolui até converter-se em casos de escândalo, essa falta de qualidade humana, mais do que Collor, Itamar, Fernando Henrique ou Lula, é que é real e honestamente ruim, porque todos eles são brasileiros como nós, ELEITOS POR NÓS. Nascidos aqui, não em outra parte... Me entristeço. Porque, ainda que Lula renunciasse hoje mesmo, o próximo presidente que o suceder terá que continuar trabalhando com a mesma matéria prima defeituosa que, como povo, somos nós mesmos. E não poderá fazer nada... Não tenho nenhuma garantia de que alguém o possa fazer melhor, mas enquanto alguém não sinalizar um caminho destinado a erradicar primeiro os vícios que temos como povo, ninguém servirá. Nem serviu Collor, nem serviu Itamar, não serviu Fernando Henrique, e nem serve Lula, nem servirá o que vier. Qual é a alternativa? Precisamos de mais um ditador, para que nos faça cumprir a lei com a força e por meio do terror? Aqui faz falta outra coisa. E enquanto essa "outra coisa" não comece a surgir de baixo para cima, ou de cima para baixo, ou do centro para os lados, ou como queiram, seguiremos igualmente condenados, igualmente estancados....igualmente sacaneados!!! É muito gostoso ser brasileiro. Mas quando essa brasilinidade autóctone começa a ser um empecilho às nossas possibilidades de desenvolvimento como Nação, aí a coisa muda... Não esperemos acender uma vela a todos os Santos, a ver se nos mandam um Messias. Nós temos que mudar, um novo governador com os mesmos brasileiros não poderá fazer nada. [...] Sim, creio que isto encaixa muito bem em tudo o que anda nos acontecendo: desculpamos a mediocridade mediante programas de televisão nefastos e francamente tolerantes com o fracasso. É a indústria da desculpa e da estupidez. Agora, depois desta mensagem, francamente decidi procurar o responsável, não para castigá-lo, senão para exigir-lhe (sim, exigir-lhe) que melhore seu comportamento e que não se faça de surdo, de desentendido. Sim, decidi procurar o responsável e ESTOU SEGURO QUE O ENCONTRAREI QUANDO ME OLHAR NO ESPELHO. AÍ ESTÁ. NÃO PRECISO PROCURÁ-LO EM OUTRO LADO. E você, o que pensa?.... MEDITE!!!!!

9.8.06

O Retrato Oval



Edgar Allan Poe

O castelo em que o meu criado se tinha empenhado em entrar pela força, de preferência a deixar-me passar a noite ao relento, gravemente ferido como estava, era um desses edifícios com um misto de soturnidade e de grandeza que durante tanto tempo se ergueram nos Apeninos, não menos na realidade do que na imaginação da senhora Radcliffe. Tudo dava a entender que tinha sido abandonado recentemente. Instalámo-nos num dos compartimentos mais pequenos e menos sumptuosamente mobilados, situado num remoto torreão do edifício. A decoração era rica, porém estragada e vetusta.

Das paredes pendiam colgaduras e diversos e multiformes trofeus heráldicos, misturados com um desusado número de pinturas modernas, muito alegres, em molduras de ricos arabescos dourados. Por esses quadros que pendiam das paredes - não só nas suas superfícies principais como nos muitos recessos que a arquitectura bizarra tornara necessários - , por esses quadros, digo, senti desppertar grande interesse, possivelmente por virtude do meu delírio incipiente; de modo que ordenei a Pedro que fechasse os maciços postigos do quarto, pois que já era noite; que acendesse os bicos de um alto candelabro que estava à cabeceira da minha cama e que corresse de par em par as cortinas franjadas de veludo preto que envolviam o leito. Quis que se fizesse tudo isto de modo a que me fosse possível, se não adormecesse, ter a alternativa de contemplar esses quadros e ler um pequeno volume que acháramos sobre a almofada e que os descrevia e criticava.

Por muito, muito tempo estive a ler, e solene e devotamente os contemplei. Rápidas e magníficas, as horas voavam, e a meia-noite chegou. A posição do candelabro desagradava-me, e estendendo a mão com dificuldade para não perturbar o meu criado que dormia, coloquei-o de modo a que a luz incidisse mais em cheio sobre o livro.

Mas o movimento produziu um efeito completamente inesperado. A luz das numerosas velas (pois eram muitas) incidia agora num recanto do quarto que até então estivera mergulhado em profunda obscuridade por uma das colunas da cama. E assim foi que pude ver, vivamente iluminado, um retrato que passava despercebido. Era o retrato de uma jovem que começava a ser mulher. Olhei precipitadamente para a pintura e acto contínuo fechei os olhos. A principio, eu próprio ignorava por que o fizera. Mas enquanto as minhas pálpebras assim permaneceram fechadas, revi em espírito a razão por que as fechara. Foi um movimento impulsivo para ganhar tempo para pensar - para me certificar que a vista não me enganava -, para acalmar e dominar a minha fantasia e conseguir uma observação mais calma e objectiva. Em poucos momentos voltei a contemplar fixamente a pintura.

Que agora via certo, não podia nem queria duvidar, pois que a primeira incidência da luz das velas sobre a tela parecera dissipar a sonolenta letargia que se apoderara dos meus sentidos, colocando-me de novo na vida desperta.

O retrato, disse-o já, era de uma jovem. Apenas se representavam a cabeça e os ombros, pintados à maneira daquilo que tecnicamente se designa por vinheta - muito no estilo das cabeças favoritas de Sully. Os braços, o peito, e inclusivamente as pontas dos cabelos radiosos, diluíam-se imperceptivelmente na vaga mas profunda sombra que constituía o fundo. A moldura era oval, ricamente dourada e filigranada em arabescos. Como obra de arte, nada podia ser mais admirável que o retrato em si. Mas não pode ter sido nem a execução da obra nem a beleza imortal do rosto o que tão subitamente e com tal veemência me comoveu. Tão-pouco é possível que a minha fantasia, sacudida da sua meia sonolência, tenha tomado aquela cabeça pela de uma pessoa viva. Compreendi imediatamente que as particularidades do desenho, do vinhetado e da moldura devem ter dissipado por completo uma tal ideia - devem ter evitado inclusivamente qualquer distracção momentânea. Meditando profundamente nestes pontos, permaneci, talvez uma hora, meio deitado, meio reclinado, de olhar fito no retrato. Por fim, satisfeito por ter encontrado o verdadeiro segredo do seu efeito, deitei-me de costas na cama. Tinha encontrado o feitiço do quadro na sua expressão de absoluta semelhança com a vida, a qual, a princípio, me espantou e finalmente me subverteu e intimidou. Com profundo e reverente temor, voltei a colocar o candelabro na sua posição anterior. Posta assim fora da vista a causa da minha profunda agitação, esquadrinhei ansiosamente o livro que tratava daqueles quadros e das suas respectivas histórias. Procurando o número que designava o retrato oval, pude ler as vagas e singulares palavras que se seguem:

"Era uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre. E maldita foi a hora em que viu, amou e casou com o pintor. Ele, apaixonado, estudioso, austero, tendo já na Arte a sua esposa. Ela, uma donzela de raríssima beleza e tão adorável quanto alegre, toda luz e sorrisos, e vivaz como uma jovem corça; amando e acarinhando a todas as coisas; apenas odiando a Arte que era a sua rival; temendo apenas a paleta e os pincéis e outros enfadonhos instrumentos que a privavam da presença do seu amado. Era pois coisa terrível para aquela senhora ouvir o pintor falar do seu desejo de retratar a sua jovem esposa. Mas ela era humilde e obediente e posou docilmente durante muitas semanas na sombria e alta câmara da torre, onde a luz apenas do alto incidia sobre a pálida tela. E o pintor apegou-se à sua obra que progredia hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado, veemente e caprichoso, que se perdia em divagações, de modo que não via que a luz que tão sinistramente se derramava naquela torre solitária emurchecia a saúde e o ânimo da sua esposa, que se consumia aos olhos de todos menos aos dele. E ela continuava a sorrir, sorria sempre, sem um queixume, porque via que o pintor (que gozava de grande nomeada) tirava do seu trabalho um fervoroso e ardente prazer e se empenhava dia e noite em pintá-la, a ela que tanto o amava e que dia a dia mais desalentada e mais fraca ia ficando.

E, verdade seja dita, aqueles que contemplaram o retrato falaram da sua semelhança com palavras ardentes, como de um poderosa maravilha, - prova não só do talentoo do pintor como do seu profundo amor por aquela que tão maravilhosamente pintara. Mas por fim, à medida que o trabalho se aproximava da sua conclusão, ninguém mais foi autorizado na torre, porque o pintor enlouquecera com o ardor do seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o rosto da esposa. E não via que as tintas que espalhava na tela eram tiradas das faces daquela que posava junto a ele. E quando haviam passado muitas semanas e pouco já restava por fazer, salvo uma pincelada na boca e um retoque nos olhos, o espírito da senhora vacilou como a chama de uma lanterna. Assente a pincelada e feito o retoque, por um momento o pintor ficou extasiado perante a obra que completara; mas de seguida, enquanto ainda a estava contemplando, começou a tremer e pôs-se muito pálido, e apavorado, gritando em voz alta 'Isto é na verdade a própria vida!', voltou-se de repente para contemplar a sua amada: - estava morta!"

A última crônica

Fernando Sabino

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever.A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.

6.8.06


"E não há melhor resposta que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida (...)
vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena a explosão,
como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão de uma vida severina. "

trecho de 'Morte e vida Severina'
João Cabral de Melo Neto


Deixo que a dinâmica da intertextualidade fale por mim...
minha mente nada me permite neste instante, quero apenas PAZ e da leitura extraio o que sinto e reproduzo da forma como penso que deve ser...
Não abuso das letras, sei que delas nada posso além de ler e absorver.
Nada sou além de palavras repetidas.
Uso os textos para me fazer compreender.
Sinto cansaço, indisponível para pensar, não quero estar nem quero ser.
Estou inerte... esperando mais um amanhecer
que por inspiração sei que não vai acontecer!

A complicada arte de ver

Rubem Alves

Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não pertence à física.William Blake sabia disso e afirmou: "A árvore que o sábio vê não é a mesma árvore que o tolo vê". Sei disso por experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tira a poesia. Olho para uma pedra e vejo uma pedra". Drummond viu uma pedra e não viu uma pedra. A pedra que ele viu virou poema.Há muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem. "Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. Não basta abrir a janela para ver os campos e os rios", escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. O ato de ver não é coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa da educação é ensinar a ver. O zen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade é uma busca da experiência chamada "satori", a abertura do "terceiro olho". Não sei se Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato é que escreveu: "Agora os ouvidos dos meus ouvidos acordaram e agora os olhos dos meus olhos se abriram".
Há um poema no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discípulos na companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles não o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: ao partir do pão, "seus olhos se abriram". Vinicius de Moraes adota o mesmo mote em "Operário em Construção": "De forma que, certo dia, à mesa ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção, ao constatar assombrado que tudo naquela mesa - garrafa, prato, facão - era ele quem fazia. Ele, um humilde operário, um operário em construção".A diferença se encontra no lugar onde os olhos são guardados. Se os olhos estão na caixa de ferramentas, eles são apenas ferramentas que usamos por sua função prática. Com eles vemos objetos, sinais luminosos, nomes de ruas - e ajustamos a nossa ação. O ver se subordina ao fazer. Isso é necessário. Mas é muito pobre. Os olhos não gozam... Mas, quando os olhos estão na caixa dos brinquedos, eles se transformam em órgãos de prazer: brincam com o que vêem, olham pelo prazer de olhar, querem fazer amor com o mundo.Os olhos que moram na caixa de ferramentas são os olhos dos adultos. Os olhos que moram na caixa dos brinquedos, das crianças. Para ter olhos brincalhões, é preciso ter as crianças por nossas mestras. Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver com um menininho, Jesus Cristo fugido do céu, tornado outra vez criança, eternamente: "A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas quando a gente as têm na mão e olha devagar para elas".Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar "olhos vagabundos"...

O texto acima foi extraído da seção "Sinapse", jornal "Folha de S.Paulo", versão on line, publicado em 26/10/2004.

5.8.06

Amor

Clarice Lispector


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.

Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.

Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.

Texto extraído no livro “Laços de Família”, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998, pág. 19, incluído entre “Os cem melhores contos brasileiros do século”, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, seleção de Ítalo Moriconi.


A rua dos cataventos


Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de
Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde!
Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror!
Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

E antes que alguém pense que é meu...
Mário Quintana, perdoe-me!

4.8.06

Amigo Virtual

Vou abrir as portas
Do meu computador!
Entre!!!
Traga pra mim
Esse gostoso riso
Que nunca ecoa!
Conte pra mim
Suas velhas histórias,
Deixa que eu me deite
Em seus ombros invisíveis
E segure em suas mãos firmes!...
Não sei olhar em seus olhos,
Mas sei sentir seu olhar,
E suas palavras
Entram direitinho
No meu coração.
O mundo parece tão pequeno
Atrás dessa rede!
Ah! Você vem
E eu nem sei de onde,
Sem passaporte
Atravessa as fronteiras
Do limite do impossível,
Traz paz e consolo,
Uma palavra, um verso
E coloridas flores
Sem perfume,
Mas que são bálsamo
Para a alma!...
Vou abrir minha casa
Para que você entre!...
Tome um café com bolo,
Me conte de você,
Permita que eu ria seus risos,
E deixe que eu seque suas lágrimas,
Se preciso for.
Você não é apenas um nome
Que se esconde atrás de um arroba,
Você tem alma
E asas,
Como os verdadeiros anjos...
Você tem um "eu"
Que precisa e deve
Ser respeitado,
Que precisa e deve
Ser amado.
De virtual, na verdade,
Você não tem nada!!!
Claro!!!
Meu café não tem sabor
E meu bolo não é doce,
Quando virtual,
Mas meu carinho
E meu amor
São, nessa rede toda,
Tudo o que tenho de mais real.
Então...
Entre sem bater!!!
Sente-se!
Tem café, bolo
E minha amizade
Esperando por você
Atrás da tela
Desse meu computador.

Letícia Thompson


Vale a pena dizer "eu gosto de você"
Todos nós temos necessidade de afeto.
Muitas vezes temos dificuldade em expressar o que sentimos pelas pessoas, achamos que elas sabem e que isso é suficiente.
Mas quem não gosta de um abraço, um carinho, uma palavra amiga, uma palavra de amor?
Quem não precisa disso?
Há pessoas morrendo de fome no mundo, todos falam, mas quantas pessoas há que estão morrendo de solidão?
Recebemos com muita freqüência mensagens dizendo que devemos dizer às pessoas o quanto as amamos porque nunca sabemos se é a última vez que as estamos vendo.
Isso é para aliviar nossa consciência no caso das pessoas desaparecerem repentinamente.
Mas eu digo que devemos dizer às pessoas que as amamos como se fôssemos encontrá-las na manhã seguinte, como se fôssemos encontrar um sorriso de volta, ou ver um brilho todo especial provocado por nós.
Um dos maiores prazeres da vida é ver a felicidade das pessoas que amamos.

Há alguns anos escrevi uma frase para uma das minhas amigas num momento em que ela não estava bem. Essa frase dizia assim:
"Não fique triste.
Se você fica triste, fico triste.
E eu não gosto de me ver triste..."
Ela sorriu.
E nessa frase aparentemente egoísta eu acabei dizendo uma grande verdade.
Sim, porque no fundo se não fazemos as pessoas felizes por elas mesmas, que as façamos então por nós mesmos.
Podemos saber que alguém nos ama e isso nos deixa felizes, mas como expressar o tamanho da felicidade que sentimos quando alguém coloca isso em palavras, em gestos?
Isso faz com que nos sintamos amados em dobro, em triplo até.
Assim, é importante que as pessoas saibam o quanto importantes são nas nossas vidas, o quanto nosso dia pode ficar iluminado com um sorriso ou um gesto inesperado.
E luz é algo que quando carregamos nas mãos, além de iluminar aqueles que nos cruzam, iluminam a nós também.
Todo o amor que damos às pessoas, recebemos de volta como uma recompensa natural.
Saber que alguém pensa na gente, que nos gosta apesar da distância, do mal-humor, dos nossos defeitos, enche a alma de paz, de serenidade...
É como um pouco de ar fresco numa janela quando precisamos respirar. Renova o espírito!
E de espírito renovado como o dia pode ficar diferente, como o mundo pode parecer diferente!...
Essa é minha pequena lição.
Não a que dei, mas a que aprendi.

* Letícia Thompson *

3.8.06

PRIMEIRO AMOR...


É que nem saudade. Mesmo que a pessoa nunca tenha sentido, quando sente já sabe logo que aquilo é saudade, ou melhor, que saudade é aquilo: aquele vazio que queria ser cheio. É que nem azia. A sensação puxa a palavra exata na hora, e a pessoa diz "Que azia!", ainda que seja a primeira vez que tem uma.

Primeiro amor é que nem festa surpresa. Quando acontece não avisa, mas é tão óbvio que dali pra frente não dá mais para viver sem pensar nele. Apesar de Tatiana só ter 14 anos, quando viu Felipe pela primeira vez, com sua roupa de goleiro, teve certeza: "Amei". E amou mesmo. Pulava. Sofria. Gargalhava de amor quando ele chegava à escola ou jogava nos treinos. Quando ele defendia uma bola, queria ser bola. Tatiana estava mesmo apaixonada.

O amor já estava transbordando quando ela foi contar a novidade pra Chiquinha Mota Pereira, sua amiga imaginária desde que elas eram pequenas. As duas cresceram juntas, Tatiana de verdade e Chiquinha de mentira, se é que se pode chamar de "mentira" alguém que, apesar de imaginária, é amiga verdadeira.
Chiquinha adorou a novidade e quis saber apenas se aquele amor era correspondido.
– Como é que eu posso saber? – respondeu (ou perguntou) Tatiana.
– Olhando fundo nos olhos dele.

Tatiana nem dormiu direito, ligada naquela urgência dos que amam pela primeira vez na vida, esperando amanhecer e ir pra escola, olhar fundo nos olhos de Felipe, pra conferir se havia algum sinal de amor vindo de lá, feito um espelho.

Finalmente deu 7 e meia e a campainha tocou. Ia começar a aula. Todos nos seus lugares, restou um lugar vazio. "Cadê Felipe, meu Deus?" Foi na hora do recreio que ela recebeu a notícia: "Felipe saiu da escola porque o pai dele foi transferido pra uma outra cidade".

E agora? Não foi fácil aquela manhã segurar o choro pra mais tarde.
– Será que todo amor de verdade tem que ter um impedimento pra se tornar impossível?
– Tatiana soluçou baixinho. E Chiquinha respondeu (ou perguntou):
– Ou será que todo amor, pra se tornar possível, tem que provar que é de verdade?