1.9.06

A ousadia da franqueza

Quantas saudades do meu amigo Frei Betto, sua sábia vivência já me trouxe tanta reflexão... Hoje, remexendo meus perdidos, achei velhos livros dele autografados... Bateu uma saudade grandiosa e resolvi postar esse texto...

Michel Foucault, em conferências na Universidade de Berkely, em 1983, revisitou o tema da parrésia, palavra grega que aparece pela primeira vez na obra de Eurípides, há sete séculos, e significa franqueza ou, etimologicamente, ³dizer tudo². O parrésico, o que fala a verdade, merece credibilidade por sua ética e coragem. Pois não se trata de apenas manifestar o que pensa, mas fazê-lo com risco de vida, ou seja, confrontando o poder. E o poderoso pode puni-lo por tamanho atrevimentoŠ ³A parrésia é uma forma de crítica ­ afirma Foucault ­ tanto ao outro quanto a si mesmo, mas sempre numa situação em que o crítico encontra-se numa posição de inferioridade em relação ao interlocutor. O parrésico é sempre menos poderoso do que aquele a quem dirige a palavra. A parrésia vem ³de baixo² e se dirige a quem está ³em cima².Por isso, um antigo grego não diria que um professor ou pai que critica uma criança faz uso da parrésia. Mas quando um filósofo critica um tirano, quando um cidadão critica a maioria, quando um aluno critica o professor, então utilizam a parrésia. Na parrésia dizer a verdade é um dever.² Plutarco, que viveu no século I, escreveu um livro intitulado ³Como distinguir um adulador de um amigo². O verdadeiro amigo é parrésico, fala a verdade, ainda que incomode ou doa. Pois a relação que temos conosco, a de amor próprio, cria em nossa mente a permanente ilusão acerca de quem realmente somos. ³Sendo cada um de nós o principal e maior adulador de si mesmo ­ diz Plutarco ­ devemos admitir sem dificuldade alguém de fora como testemunho.² Alguém que nos critique e nos faça reconhecer os erros e defeitos. Só um amigo parrésico é capaz de nos livrar da ilusão e fazer com que nos olhemos no espelho da alma.Como saber que o amigo é parrésico? Plutarco diz que há dois modos: primeiro, conformidade entre o que ele fala e vive, como Sócrates. Segundo, a firmeza de convicções. ³Se se alegra sempre com as mesmas coisas e as preza ­ diz Plutarco ­ e ordena sua própria vida segundo um único modelo. O adulador, por não ter caráter, não vive uma vida escolhida por ele mesmo, e sim pelos outros, e modela-se e adapta-se para o outro; não é simples nem coerente, mas ambíguo e contraditório, por fluir e mudar de forma como a água que, vertida de um recipiente a outro, adequa-se à vasilha que a recebe.² Foucault chama a atenção ao fato de Plutarco sublinhar que somos incapazes de admitir que não sabemos nada e nem sabemos quem somos.Galeno, famoso médico do século II, observa que vemos os defeitos dos outros, mas permanecemos cegos quando se trata dos nossos. Platão sublinha que o amante é cego frente ao objeto de seu amor. ³Se, portanto, cada um de nós se ama acima de todas as coisas ­ diz Galeno - deve estar cego no que concerne a si mesmo. (Š) Quando um homem não saúda pelo nome um poderoso ou rico, quando não o freqüenta nem senta à mesa com ele, quando vive uma vida disciplinada, é de se esperar que este homem diga a verdade.² Galeno sugere que tomemos este homem por amigo e lhe peçamos que diga tudo que observa em nós. Ele haverá de nos salvar, tanto quanto o médico que cura a enfermidade de nosso corpo.Esses sábios e antigos conselhos servem em todas as circunstâncias de nossas vidas. Quem dera que aqueles que ocupam uma função de poder ­ do político ao síndico do prédio, do gerente à guardiã da capela ­ estimulassem aqueles com quem e para quem trabalham a manifestar suas críticas e sugestões. No entanto, nossa vaidade torna os nossos ouvidos moucos. E qualquer crítica é recebida como punhalada em nosso ego.Sobretudo aqueles que, entre nós, têm baixa auto-estima e necessitam, como o peixe da água, viver cercados de bajuladores.Quem dera tivéssemos a ousada humildade de Jesus que, em Cesaréia de Filipe, fez duas perguntas a seus discípulos: ³O que o povo diz a meu respeito? E vocês, o que dizem de mim?² (Mateus 16, 13-20).Em geral preferimos nos iludir convencidos de que os subalternos pensam a nosso respeito o que gostaríamos que pensassemŠ E sem dar-lhes chance de nos corrigir, vamos arrastando vida afora os nossos defeitos, que prejudicam a terceiros e nos colocam no pelourinho do ridículo.
Frei Betto é escritor, autor de ³Sinfonia Universal ­ a cosmovisão de Teilhard de Chardin² (Ática), entre outros livros.

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